domingo, 31 de julho de 2011

OS MISTÉRIOS DE MONT-SAINT-MICHEL por Francisco Souto Neto



OS MISTÉRIOS DE MONT-SAINT-MICHEL
por Francisco Souto Neto



Folha do Batel Ano 4 - Maio/2002 - Nº 31
Diretor-presidente: José Gil de Almeida



Capa:



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OS MISTÉRIOS DE MONT-SAINT-MICHEL
Francisco Souto Neto


Souto Neto com Le Mont-Saint-Michel ao fundo. 

            Por vários motivos, o Mont-Saint-Michel, uma ilha situada na Normandia, litoral norte da França, é considerado um dos locais mais misteriosos e fascinantes do mundo. No ano passado visitei aquele lugar na companhia de um amigo, o psicólogo Rubens Faria Gonçalves. Ali hospedados durante alguns dias, pudemos conhecer a antiguidade da cidadela medieval e observar as fenomenais marés – as maiores da Europa – que ocorrem naquela região.

Marés gigantescas

            A Natureza privilegiou Le Mont-Saint-Michel com ciclópicas marés. A diferença entre a altura da montante e da vazante chega aos 15 metros. Na vazante, o mar afasta-se por cerca de 10 quilômetros, deixando expostas as perigosas areias movediças que já mataram centenas de desavisados. Ao retornar, o mar vem com a velocidade de um cavalo a galope. Por tais motivos, é proibido nadar na maré alta e andar pelas areias na baixa. Em toda parte, placas advertem aos turistas dos perigos do Monte.

Esta pequena capela fica atrás do Mont-Saint-Michel. Na maré
vazante, o mar está 10 quilômetros afastado do base do monte.

Rubens Gonçalves apontando para a chegada do mar, na maré montante.
Em poucos minutos, as águas atingem a encosta do Monte, à direita.

            Durante nossos dias de estada, pudemos admirar por várias vezes esses fenômenos. No primeiro dia, por volta das 15 horas, quando a vazante atingira seu ponto mais baixo, fomos olhar de perto. O mar recuou com tanta intensidade que desapareceu para além da linha do horizonte. Vimos um grupo de turistas tirando os sapatos para iniciar um passeio guiado pelas areias. O guia era um expert do próprio Monte que sabia como identificar e, principalmente, evitar as áreas de areias movediças.

A placa branca adverte aos motoristas qual a hora em que a maré montante
encobrirá totalmente o estacionamento. A placa maior, com fundo preto, avisa que
 "baignade interdite" (banho é proibido) e existem "sables mouvants" (areias movediças).

            Deste modo, pode-se ir através das areias expostas, também porque o retorno das águas do mar tem hora marcada, diariamente divulgada por duas vezes através de grandes placas fixadas em pontos estratégicos da ilha. Resolvemos pisar um pouco nas areias e impressionei-me por serem elas extremamente escorregadias.

A saga da foca

            Pouco depois das 17 horas fomos observar o retorno do mar e ficamos fascinados porque as águas de um rio que passa ao lado do Mont-Saint-Michel começaram, de repente, a correr ao contrário. O mar surgiu no horizonte e veio avançando rapidamente em direção à ilha, provocando ruidosos turbilhões. Nós, e os demais turistas que ali nos encontrávamos, corríamos para todos os lados, gritando alegremente, mostrando uns aos outros os efeitos do fascinante fenômeno. O mar avançava quase que em cascatas sobre o continente, formando rodamoinhos. Um grande declive nas areias dava-nos a certeza de que teríamos tempo hábil para fugirmos das águas, caso fosse necessário. 
            Vimos então um animal trazido pelo mar, que emergia e desaparecia no turbilhão. Quando o bicho saiu das águas e subiu a pequena ladeira de areia, percebemos que se tratava de uma foca que, ao terminar a subida, estirou-se e ficou preguiçosamente a tomar sol, alheia à barulhenta e admirada plateia humana. Todos nós não resistimos a um pequeno afago nas costas do animal, que parecia habituado a receber tais carícias. Um dos presentes, um entusiasmado turista, dizendo que seria mais seguro que a foca voltasse ao mar, levou as mãos sob o mamífero, rolando-o para as águas. Porém a foca não tinha a mesma opinião porque, sob uma gargalhada generalizada, saiu do mar buliçoso, galgando a ladeira por onde fora empurrada e, outra vez, estirou-se na areia seca.

Rubens Gonçalves filmando a foca trazida pela maré montante.

            Mas tudo foi muito rápido, porque a maré expulsou-nos para as rochas, donde vimos a foca, agora sem areias secas onde tomar banhos de sol, nadando para longe.
            Em poucos minutos toda a região onde se avistavam somente areias – as temíveis areias movediças – estava tomada pelo mar, agora muito sereno, que contornou toda a ilha de Le Mont-Saint-Michel.
            Algumas vezes atravessamos La Digue a pé e fomos aos campos nas terras continentais, a grande distância, para observarmos o Monte de longe e para vermos os famosos carneiros das redondezas.

Souto Neto atrás dos carneiros, no continente, com
a ilha do Mont-Saint-Michel ao fundo.


A cidadela medieval

            A história do Monte é a seguinte: no final do século VII, Saint Michel (no Brasil, São Miguel) teria aparecido em sonho ao abade Aubert, pedindo-lhe que construísse uma capela no alto do Mont-Tombe (Monte Túmulo), pois era assim que então se chamava. O abade não tomou qualquer providência porque as violentas marés e as traiçoeiras areias movediças da vazante tornavam o caminho extremamente perigoso. Então Saint Michel apareceu-lhe num segundo sonho, e com um dedo apertou a cabeça do assustado religioso, para que este se lembrasse do seu pedido.

O crânio do abade Aubert, tido como relíquia numa das igrejas do
Mont-Saint-Michel (que estava fechada), mostra o lugar onde o
anjo São Miguel (San Michael) o teria apertado com o dedo.
Desenho "Caveira do abade Aubert" encontrado na internet.

            Assim, o Mont-Saint-Michel – como passou a ser chamado – começou como um oratório no ano de 708. Em 1017 foi iniciada a construção da igreja e da abadia. No começo do século XIII foi acrescentado o mosteiro que passou a ser conhecido como “La Merveille” (“O Milagre”) e “A Maravilha do Ocidente”, um dos mais gloriosos complexos arquitetônicos do planeta.
            O Monte tornou-se um dos mais importantes locais de peregrinação cristã na Europa, só comparável a Roma e Santiago de Compostela. No final do século XIX a ilha foi unida ao continente por uma passarela artificial conhecida como “La Digue”, hoje usada por veículos que chegam até aos portões da cidadela.
Fotografia tirada por Souto Neto do alto da abadia, mostra em primeiro
plano a ilha, em seguida La Digue, que faz a ligação com o continente, cheia
de carros e ônibus estacionados, o que é possível somente durante a maré
vazante. Em último plano, as pastagens das ovelhas. Muito ao longe, depois
das pastagens, há uns hotéis para quem deseja pagar diárias menos caras.

            No seu interior, pelas ruelas, circulam somente pedestres. A cidadela medieval que resistiu a várias invasões e guerras ocorridas através dos séculos e que chegou intacta aos nossos dias, é encantadora e fascinante. Andar por suas ruas tortuosas, algumas das quais com menos de um metro de largura, transporta-nos a um passado remoto e fascinam pela extrema beleza.
            A abadia, no alto da ilha, é magnífica. Percorremos seus corredores, salões e galerias. Alguns trechos são mantidos propositalmente com pouca iluminação, o que facilita a sensação de recuo no tempo. Tudo é desmesuradamente grandioso. Não sei em que Umberto Eco se inspirou para escrever “O Nome da Rosa”, mas não será inesperado se a resposta estiver no Le Mont-Saint-Michel. De todo o complexo formado pela abadia e igreja, a maior surpresa é o átrio no pináculo da construção, com delicada colunata dupla, tudo isto emoldurando o grande quadrilátero que abriga um jardim suspenso cheio de florinhas e pássaros.

Rubens Gonçalves filmando o claustro e seu jardim,
na parte mais alta da abadia.

            Durante o dia, hordas de turistas entopem as ruelas e é difícil andar por ali. A Grande Rue, principal via do Monte, que sobe íngreme até à abadia, é cheia de lojas, lanchonetes e restaurantes atulhados de gente. É enorme o número de turistas viajando acompanhados dos seus cães de estimação.

Rubens Gonçalves na Grande Rue, a principal
do Monte, repleta de turistas.

            À noite, como poucas pessoas hospedam-se na cidadela, as multidões desaparecem e o silêncio desce imperioso. As ruelas medievais tornam-se quietas. Andávamos então ouvindo o ressoar dos próprios passos, e as nossas vozes ecoavam pelos becos vazios. Só alguns casais permaneciam namorando na obscuridade.

Souto Neto subindo por este caminho entre duas lojas da
Grande Rue. Por incrível que pareça, esta escada é uma
rua do Monte, que leva às entradas de algumas casas.

            Em julho o sol se põe às 22 horas. No lusco-fusco, os passarinhos alvoroçam-se para liquidar os farelos de comestíveis deixados no chão pelos turistas. Os cães, de todos os tamanhos e cores, que durante o dia imperam na cidadela, somem com os seus donos quando a noite cai. Surgem então os soberanos noturnos do Mont-Saint-Michael: os gatos. Inúmeros, entram nos latões de lixo revirando tudo que podem, e andam em atitude de caça. Creio que procuram por ratos e baratas, mas ainda bem que não vimos essas duas outras espécies.
            Quando deixamos o nosso hotel centenário situado no alto de uma das muralhas da cidadela – o Hôtel Du Guesclin - teríamos como destino outras localidades do interior da França, mas nem a expectativa de futuras descobertas encobria a tristeza de termos que deixar o quase mágico Le Mont-Saint-Michel, com suas marés gigantescas e as admiráveis construções que, durante todo o tempo, deram-nos a sensação de estarmos face a face com a Eternidade.

Ilustração original: Rubens Faria Gonçalves e Francisco Souto Neto com a ilha Le Mont-Saint-Michel ao fundo.
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ADENDO EM 2015 SOBRE O AUTOR,

o Comendador FRANCISCO SOUTO NETO

A crônica acima, a respeito do Mont-Saint Michel, foi a primeira de muitas dezenas de memórias de viagens que Francisco Souto Neto publicou nos jornais  de José Gil de Almeida (Jornal Água Verde, Folha do Batel e Jornal Centro Cívico) a partir de maio de 2002.


No dia 9 de agosto de 2015 foi outorgado a Francisco Souto Neto, pela Associação Brasileira de Liderança (São Paulo) o título de Comendador, através de comenda (medalha) seguida do Prêmio Excelência e Qualidade Brasil 2015, na categoria “Cultura”, como “Destaque entre os melhores do Brasil” (vide foto abaixo). Levaram em consideração o prêmio “Troféu Imprensa do Brasil 2014” que Francisco Souto Neto recebeu no ano passado, também o fato de ser membro da Academia de Letras José de Alencar, somados ao sucesso da biografia do Visconde de Souto (que embora ainda inédita, já recebeu a atenção do The History Channel que em 2013 entrevistou F. Souto Neto e sua prima Lúcia Helena Souto Martini no programa“Detetives da História”, teve trechos publicados na Revista do IHGB  e na Revista do IHGRJ, que estão na internet) e que deverá ser publicada pela Editora Trento, de Ricardo Trento, presidente da Unicultura de Curitiba. Mas o motivo principal da honraria provavelmente deve-se aos mais de 3.000 textos em jornais e revistas, dentre os quais a coluna Expressão & Arte que foi publicada durante onze anos e teve extensão simultânea em dois outros jornais e uma revista, também as crônicas publicadas desde 2007 e as memórias de viagens nos jornais mencionados no primeiro parágrafo.

Comendador Francisco Souto Neto

Detalhe da comenda de Francisco Souto Neto

O Comendador FRANCISCO SOUTO NETO usando sua comenda e com o chihuahua Paco Ramirez. Nas duas telas acima do piano, os seus pais: Edith Barbosa Souto (1911-1997) segurando o chihuahua Quincas Little Poncho (1973-1990), e o jornalista Arary Souto (1908-1963).    

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