quarta-feira, 17 de agosto de 2011

OS ITALIANOS DE SAVONA por Francisco Souto Neto


OS ITALIANOS DE SAVONA
por Francisco Souto Neto


Jornal Água Verde Ano 12 – Junho 2003 – Nº 263
Diretor-presidente: José Gil de Almeida

Página 8:

Página 9:

Capa:




OS ITALIANOS DE SAVONA
Francisco Souto Neto

No ano de 2001 tive que ir à cidade de Savona, ao norte da Itália, porque dali partiria o navio que me levaria em cruzeiro pelo Mediterrâneo. Embora as publicações sobre a Ligúria nada apontassem de grande interesse a respeito de Savona, eu, que me considero um turista independente, resolvi chegar à localidade com três dias de antecedência ao embarque no Costa Riviera, para poder conhecer e vivenciar a antiga cidade portuária e seus arredores.

Uma Savona escura e atemorizante

Devido a um atraso do trem, cheguei a Savona quando já era noite. Achei a estação ferroviária esquisita e escura. Sua porta desembocava numa enorme escadaria, desagradável obstáculo para as rodinhas da minha mala. Do outro lado da rua mal iluminada, vi apenas um matagal. Talvez mais “perdido” do que eu, um senhor que estava saindo da estação, olhou para aquele mato e comentou em italiano com forte sotaque: “Isto se parece com a Bulgária”. Pensei: “Só se for a Bulgária após um bombardeio”.
Eu tinha uma reserva no Hotel Savona, distante uns 500 metros da estação. Não havia táxi, e fui a pé puxando a mala até ao destino. Meus passos ecoavam pelas ruas vazias e silenciosas. Temi ser assaltado e me apressei. Após o grande terreno baldio, passei pela Piazza Aldo Moro, àquela hora sem uma viva alma, atravessei uma ponte e cheguei ileso à Piazza Del Populo, onde se localizava o meu hotel.
Na manhã seguinte, observei pela janela as árvores da praça e o movimento das pessoas. Uma senhora de bastante idade que vinha carregando pesada sacola de supermercado, sentou-se num dos bancos e começou a movimentar os pés no ar. Depois contornou aquele banco e, segurando-se numa das laterais, abaixou-se por algum tempo e levantou-se. Repetiu por muitas vezes a flexão dos joelhos. Percebi que ela se exercitava no caminho entre o mercado e a sua casa. Fui ao banheiro, escovei os dentes, voltei à janela, e lá continuava a senhora a exercitar-se, enquanto sua sacola repousava sobre o banco. Naquele exato momento passei a gostar de Savona, sem saber ainda que a cidade me reservava muitas outras situações de extremo brilho humano.

Uma Savona brilhante e encantadora

Souto Neto em frente a exuberante jardim de Savona.

Optei por um passeio a pé, em direção às praias. Após uns cinco quarteirões de riquíssima arquitetura e lojas finas, avistei o azulíssimo Mar da Ligúria. De repente vi surgir ante meus olhos um mundo todo diferente. Numa extensa rua para pedestres, paralela à praia, passeavam pessoas muito velhas, exageradamente elegantes. No lado da rua oposto à praia, havia jardins repletos de parques onde observei uma febril atividade de crianças. Como num quadro de Brueghel, havia ali todo gênero de jogos infantis. No outro lado estava a praia propriamente dita, mas muito diferente das que vemos no Brasil. Um curto espaço das areias era livre. A partir dali, a cada trecho de uns 40 metros, havia cercas de delimitavam os diversos espaços pagos de praia particular, onde as pessoas encontram cabines para trocar de roupa, chuveiros, espreguiçadeiras e guarda-sóis coloridos. A areia desses espaços particulares era incessantemente varrida pelos empregados. À disposição dos usuários havia bares e lanchonetes de aspecto asséptico. Notei que as pessoas mais velhas ficam deitadas nas espreguiçadeiras, enquanto os adolescentes e crianças brincam manualmente com bolas. Eram centenas as pessoas que se divertiam nas praias pagas, mas curiosamente ninguém se atrevia a molhar mais do que os pés. Apenas umas cinco pessoas andavam ao quebrar das ondas, mas ninguém nadava. Andei cerca de um quilômetro pela calçada, que fica uns quatro metros acima do nível das praias, sem ver uma única pessoa nadando, embora as areias particulares estivessem cheias de gente. Trata-se, pois, de uma questão cultural: os savonenses gostam de estar na praia, e não do banho de mar, e assim é.

Atrás de Souto Neto, as praias particulares. À direita da foto, vêem-se
pessoas jogando na areia. Na extrema direita  localiza-se a avenida
beira-mar, exclusivamente para pedestres.

Amarcord de Fellini na praia à noite

É como se existissem três diferentes Savonas: a do centro da cidade cosmopolita, a do seu porto e a da praia. Se esta última pareceu-me interessante durante o dia, sua faceta noturna, sobretudo no setor livre e, portanto, grátis, mostrou-se surpreendente. É que além dos habituais donos de cachorros – e vi uma moça dividindo o sorvete com seu cão guloso, ambos alternando-se nas lambidas – e das crianças brincando à Brueghel, havia barracões a beira-mar enfeitados com bandeirinhas que abrigavam palcos, nos quais dançavam casais embalados por músicos e cantores apreciados por pessoas que bebiam sentadas em frente a mesinhas armadas na areia.
Num desses palcos destacavam-se dois pares, o primeiro formado por duas mulheres de meia-idade que dançavam com admirável sincronismo, seus pezinhos ágeis e rápidos elevados pelos saltos altos; e o segundo por um senhor calvo, muito barrigudo, e sua mulher bem baixinha. Aquele barrigão afastava a bailarina, mas ainda assim rodopiavam com segurança, beleza e alegria.
Os aromas variados, compostos dos perfumes das pessoas e das cozinhas das lanchonetes ao ar livre, temperavam o footing, principalmente dos idosos. Vi três senhoras passeando de braços dados – como a Gradisca de Fellini e suas duas amigas – mas todas elas de cabelos brancos, com batom vermelho, saltos altos e muito elegantes. Elas passaram em frente a um velhinho garboso sentado num dos bancos, que com elas flertou sem dissimulações.

Nesta cena de Amarcord, de Federico Fellini, três amigas
(Gradisca, a atriz Magali Noel, ao centro) fazem o footing,
com a Gradisca apoiada no braço de cada uma das amigas,
tal como as idosas senhoras da avenida beira-mar de Savona.

Como num filme felliniano, tudo era extremamente belo e inacreditável para quem vive no nosso Brasil atual. E que privilégio o das crianças que brincam dia e noite na segurança dos parques, e o dos idosos bem tratados que vivem em países civilizados, que se vestem bem e que passeiam e namoram na praia sem o temor a assaltos.
Em suma, minha primeira impressão negativa de Savona se dissipou, enquanto esta, a de uma cidade adorável, invejável e extraordinária, ocupou todo o espaço da minha memória.
No terceiro dia, ao embarcar no Costa Riviera, sentia-me em êxtase, encantado com a singela beleza do cotidiano de Savona e com aquela italianada maravilhosa e feliz.

-o-

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