quarta-feira, 3 de agosto de 2011

TEMPESTADE NO OCEANO ÁRTICO E SOL DA MEIA-NOITE por Francisco Souto Neto




TEMPESTADE NO OCEANO ÁRTICO E SOL DA MEIA-NOITE
por Francisco Souto Neto

Folha do Batel Ano 4 – Julho/2002 – Nº 33
Diretor-presidente: José Gil de Almeida

Capa:

Página 5:




TEMPESTADE NO OCEANO ÁRTICO E SOL DA MEIA-NOITE
Francisco Souto Neto

            Em julho de 1995, com o companheiro de algumas viagens ao Exterior, Rubens Faria Gonçalves, fiz um cruzeiro de 14 dias a bordo do Costa Allegra, com início e término em Amsterdã, que teve como maiores atrações o remoto Cabo Norte, na Noruega, e a vulcânica Islândia.

Souto Neto abrindo a porta da cabine 7004

Souto Neto e Rubens Gonçalves
no interior da cabine 7004.

Cabine 7004. Atrás de Rubens Gonçalves está a porta para a sacada.
A porta e as janelas, à altura de 7 andares do nível do oceano,
 seriam "lavadas"  pelas ondas do mar durante a violenta tempestade.
Esta foto foi tirada ao início do cruzeiro, no sul da Noruega,
quanto as noites eram ainda escuras, antes de atravessarmos
o Círculo Polar Ártico e atingirmos a área do sol da meia-noite.

            Na madrugada do sexto dia de navegação, contornamos o Cabo Norte e começamos a rumar para o próximo destino, a cidade islandesa de Akureyri. O percurso do Cabo Norte – que é o ponto extremo norte do continente europeu – à Islândia, duraria dois dias de navegação nas águas quase geladas do Oceano Glacial Ártico. Embora estivéssemos no verão do Hemisfério Norte, naquela região do mundo a temperatura máxima alcançada do auge de tal estação raramente ultrapassa os dez graus centígrados. Ali, dentro do Círculo Polar Ártico, é onde ocorre o maravilhoso fenômeno do sol da meia-noite: o astro-rei não se põe, permanecendo acima da linha do horizonte durante as 24 horas do dia.

A tempestade

            Se alguém, algum dia, fizer uma pesquisa no diário de bordo do capitão do Costra Allegra sobre os eventos ocorridos nos dias 10 e 11 de junho de 1995, atestará que no meu relato adiante não existe qualquer exagero. A verdade é que o navio esteve muito próximo a um naufrágio.
            Embora já tivéssemos vislumbrado no Cabo Norte um tímido sol da meia-noite descobrindo-se e ocultando-se sobre as nuvens persistentes, quando começamos a travessia rumo à Islândia, o mar foi tornando-se agitado, e uma espessa neblina envolveu a nave. Pela manhã do dia 10, forte chuva tomou o lugar da neblina. Na hora do almoço, percebemos que os poderosos estabilizadores do navio não conseguiam impedir o crescente balanço. Os próprios garçons equilibravam os pratos com dificuldade, as pernas teimando em não obedecer ao caminho certo. Interrompemos nosso almoço, pois começávamos a enjoar e dirigimo-nos à nossa cabine. Ao sairmos do restaurante, vimos o constrangimento de uma passageira que passou por nós cambaleante e, sem poder evitar o súbito desastre, curvou o próprio corpo num doloroso gemido, devolvendo o almoço sobre o tapete.
            A tempestade aumentou, transformando o Costa Allegra numa gigantesca gangorra. Deitamo-nos em nossas camas, quando o navio começou a produzir estrondos parecidos com explosões: é que ele era elevado pela fúria das ondas, ficava com a proa no ar e, ao descer com toda força, batia violentamente contra o mar encrespado.

"Navio na tempestade", apontado por Souto Neto, é um painel
que se encontra num dos corredores do Costa Allegra, cujos
passageiros jamais poderiam imaginar durante aquela viagem
teriam que enfrentar uma tempestade muito semelhante.


            Ocupávamos a suíte 7004, a primeira da proa que, à altura de sete andares do nível do oceano, era dotada de uma sacada particular. Pois quando o navio despencava vertiginosamente do seu movimento pendular, as águas do mar varriam a sacada, “lavando” a porta e as três janelas. As cadeiras espreguiçadeiras desmontaram-se. Quando a proa subia, eu observava que meu amigo afundava nos lençóis; quando baixava, ele parecia flutuar sobre a cama. Eu me agarrava com força às bordas do colchão, para não ser atirado ao solo. Objetos caíram dos armários, esparramando-se pelo tapete. Dentro do frigobar, quebraram-se uma garrafa e algumas taças. O televisor que era parafusado sobre uma base móvel em forma de círculo, teve os fios arrancados pela violência dos movimentos e ficou girando como que tomado por poltergeists. A embarcação jogava para todos os lados e não uniformemente como uma gangorra. Tive a sensação de estar sendo liquidificado. Numa das ocasiões em que me levantei para ir vomitar no banheiro, o movimento do navio atirou-me através da cabine. Senti-me “catapultado” porque derrubei a mesa de centro da nossa saleta e caí sobre o sofá, donde engatinhei com dificuldade até ao banheiro.
            Curiosamente, não senti medo nem por um segundo, provavelmente porque o enjôo era tão intenso que anestesiou as outras sensações. Porém, soubemos depois que muitos passageiros acorreram aos salões com seus salva-vidas, temendo por um naufrágio. Até a experiente tripulação enjoou.
            Somente cerca de vinte horas após o início do pesadelo, a tempestade amainou. Meu amigo Rubens, abatido, disse-me: “Quando contarmos o que aconteceu, pensarão que exageramos”. Mas a verdade foi muito mais extraordinária do que poderia conceber a imaginação.

Sol da meia-noite

            Estávamos ainda distantes do final do cruzeiro, mas na noite de 11 de junho, que seria a última dentro do Círculo Polar Ártico, houve a ceia de gala do capitão. Com os músculos e os pulmões doloridos, jantamos moderadamente, como de estivéssemos convalescentes de uma cirurgia... O mar tornou-se plácido e o céu mostrou-se sem nuvens.

Souto Neto em foto tirada à meia-noite, para
memorizar o brilho quase horizontal do sol.

Rubens Gonçalves com o sol da meia-noite no horizonte.

Souto Neto no convés, observando o sol da meia-noite.

            Tivemos um maravilhoso sol à meia-noite, com o astro-rei brilhando como ouro acima do horizonte. Do convés, apesar do frio, as senhoras idosas olhavam placidamente ao espetáculo, com as pedrarias e os brilhos dos seus vestidos longos ao vento, refletindo o dourado daquele magnífico céu que não anoitece. Todos perdiam-se na contemplação ao sol, como querendo esquecer os horrores vividos há tão poucas horas...

Souto Neto cumprimentando o capitão do navio.

            Vimos o capitão passeando pelo tombadilho e notamos que ele era olhado por todos com admiração. É que não restam dúvidas de que, ao comandar com segurança o navio através da tempestade, ele evitou que nos transformássemos numa trágica notícia...

Em noite de jantar de gala, Souto Neto
entre duas esculturas de gelo.

            Aproximávamo-nos da Islândia. Agora, tudo era paz e beleza outra vez!

-o-


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